quarta-feira, 2 de junho de 2010

A JUMENTA QUE FALA

A jumenta olhou para o lado, deu uma respirada forte e disse: “é, pelo jeito vou parir aqui mesmo, com essa carga de água nas costas!!”

A terra, todo mundo sabe disso, é uma necessidade básica para a sobrevivência, principalmente do lavrador, que tem como base do seu trabalho a plantação. De modo geral, todos nós somos dependentes da terra para sobreviver, mas o lavrador tem uma ligação, uma dependência maior de que todos, pela própria natureza de seu trabalho.

O problema é que o acesso a terra fica cada vez mais difícil para quem não pode pagar por ela. É isso mesmo, pagar por um bem que é da natureza, mas que alguns privilegiados economicamente se apropriaram dela. Uma pequena minoria de pessoas se apropriou da maioria da terra para fins puramente de comércio, de acumulação de bens.

Sendo a terra uma necessidade básica para sobrevivência e essa estando concentrada nas mãos de alguns, consequentemente esse acesso desigual terá conseqüências graves. Porque muitos os que realmente precisam da terra para plantar e sobreviver com sua família, ficam sem nada, sem condições de trabalho.

Nessa situação que é bem conhecida de todos, surge entre os trabalhadores rurais as iniciativas de luta pela terra, os chamados movimentos sem terra, que tem como bandeira principal a conquista da terra para nela trabalhar. Essa luta tem gerado polêmicas, conquistas, desafios, conflitos... Mas o certo é que muita gente conseguiu, a duras lutas, o direito de ter um pedacinho de terra para trabalhar.

Nessas lutas desafiadoras, muitos acontecimentos se tornam bem conhecidos entre a população sem terra, algumas histórias se transformam em lendas, em símbolos de resistência entre a classe e terminam ajudando a manter a memória perseverante do caminho que trilharam para a conquista da terra.

O assentamento Gota D’água, é um bom exemplo dessa caminhada cheia de lutas, alegrias, desafios, as vezes decepções, mas sempre mantendo a frente a perseverança e esperança em dias melhores.

O assentamento fica localizado no interior do Maranhão, numa região muito seca, onde água em abundância mesmo só era possível quando dava uma chuva grossa que a população enchia as cumbucas e usava a água para os afazeres de casa. Além da água das raras chuvas, a única opção que a população tinha era um brejo que passava a 16 km, dentro das terras de um velhinho, que depois de boas conversas cedeu água durante um bom tempo para o povo do assentamento.

Uma outra opção de água, um pouco mais perto, mas ao mesmo tempo mais complicada para o consumo e que dependia também das chuvas, era a água que ficava parada nas bitolas dos caminhões madeireiros que entravam nas fazendas em busca de madeira. Essa era a água que servia para os pequenos animais e para banho dos homens, porque corria uma fofoca na comunidade que os homens não gostavam muito de tomar banho, talvez pela dificuldade de água, alguns só tomavam banho uma vez por semana.

Essa estorinha sobre o banho dos homens criou asas e tomou conta da comunidade, dizem que até hoje tem homem que só toma banho no sábado, que é para honrar a história, para lembrar das dificuldades iniciais do assentamento. Dizem também que o sorriso, aquele sorrisinho de canto de boca, é a marca registrada desses que não gostam de tomar banho. Mas isso é faz parte de outra conversa.

Depois de algum tempo de dificuldades enfrentadas em busca da água em lugares diversos e todos longe do assentamento, a comunidade decidiu em assembléia, cavar um poço em mutirão, mais próximo da vila, na intenção de facilitar o acesso à água.

E assim fizeram, juntaram todos os homens do PA Gota D’água e começaram a cavar numa baixada 800 metros ladeira a baixo, juntaram toda a ferramenta que existia no assentamento e iam fazendo revezamento, enquanto uns iam para o roçado outros ficavam tocando a cavada do poço e as mulheres também iam se revezando no preparo da comida. Depois de 42 dias cavando, sem descansar nem aos domingos, porque já fazia parte do planejamento antecipado dos trabalhadores, o poço já media 96 metros de profundidade, depois dessas seis semanas, a terra começou a dar sinal de água. Aí foi uma festança só, gritos de alegria, canto de agradecimento, uma pinguinha pra comemorar... Com essa novidade, ninguém mais quis ir para a roça, todos queriam ficar ali, ajudando a cavar o poço, sendo que foi logo a água fluiu com abundância e saciou a necessidade de todos.

Mas, é bom lembrar que o poço era só um para abastecer a comunidade inteira, e apesar de estar perto da comunidade, ainda tinha uma ladeira de aproximadamente 700 metros para subir com a água. Isso significa que o problema da falta de água tinha sido resolvido, mas não o sacrifício para ter esse precioso líquido dentro de casa.

É aqui que ganha espaço uma personagem importante dessa história, que, aliás, só aqui ela está sendo citada, mas esteve presente em todo esse percurso de enfrentamento na luta pela terra. A personagem é a jumenta JUMA (um mistura de jumenta e mãe). A Juma, era o principal meio de transporte que existia no PA Gota D’água, ou melhor, o principal não, o único. Era a Juma que transportava todos os alimentos da roça até a vila, era Juma que servia de transporte quando alguém tinha que ir até o povoado mais próximo e em especial no abastecimento de água para toda a vila.

Juma esteve presente em toda a histórica inicial do Gota D’água e sua participação para a manutenção do povo na terra foi de grande importância, porque sem a Juma, não tinha água, sem água, nem aqueles cascão que não gostam de tomar banho ficam. Pois tem que beber. E assim a jumenta Juma se tornou patrimônio econômico-social e cultural da comunidade do PA Gota D’água.

Juma praticamente ficava com a cangalha nas costas o dia inteiro, trabalhando, carregando água, mandioca, milho, etc, saia um, chegava outro e a jumenta sempre “dando conta do recado”, não descansava, até que um dia, aconteceu algo surpreendente, algo que a compreensão humana não pode desvendar, esse fato ficou marcado na história do PA. Trata-se do dia em a jumenta Juma falou.

Num desses dias de muito trabalho, que era rotina para a jumenta, o sol já estava caindo para o final da tarde, Juma estava servindo a mais um dos moradores que esperava sua vez já fazia umas duas horas. Era um dos moradores mais antigos e respeitados do lugar, Zuca do Santos, liderança importante, que tem credibilidade no que diz. Estava ele com a carga de água nas costa da jumenta, no pé da ladeira para subir a terceira viagem, quando Juma que estava prenha, nos dias de parir, olhou para o lado, deu uma respirada forte e disse: “é, pelo jeito vou parir aqui mesmo, com essa carga de água nas costas!!”

Zuca ficou surpreso, meio atordoado com o que ouviu, não acreditou, olhou pra todos os lados não viu ninguém, puxou o facão da bainha e gritou: quem é que ta aí!!?? A jumenta respondeu: foi eu seu Zuca, sou eu que estou dizendo que com tanto trabalho assim, não vou ter tempo nem de parir.” Com isso Zuca dos Santos desmaiou e quando acordou já estava na comunidade, com todos ao seu redor, curiosos e preocupados com o que tinha acontecido. Zuca não dava conta de responder a todas as perguntas e calou por um momento, respirou fundo e contou o fato acontecido. Contou e repetiu quantas vezes foi perguntado.

E assim a jumenta juma entrou para a história do PA Gota D’água, como a jumenta que falou.

Naquela mesma noite, juma deu à luz a bonito jumentinho e depois de alguns dias morreu. Alguns dizem que foi do parto, outros dizem que foi de cansaço, dizem ainda que pode ter sido por causa da conversa que teve com Zuca dos Santos, dizem até que ela conversava a temos com Zuca e só aquele dia ele resolveu contar, porque era a despedida da jumenta.. O jumentinho nasceu bem de saúde e cresceu ali pelos terreiros do assentamento. Os mais experientes dizem que o jumentinho tem as aparências, traços, as feições parecido com alguns moradores do lugar. será!? Será que Juma também servia para aliviar os caba safado??!!

Hoje a associação do assentamento construiu um monumento em homenagem a jumenta Juma, como símbolo da luta e do árduo trabalho do começo de sua história.

O jumento filho, já está bem grande e vez por outra dar umas relinchadas no meio da noite, por várias vezes. Dizem que é chamando seu pai... que nunca se pronunciou.

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